top of page

 

         Contos

I

  A MULHER DE “FIGUEIRA PAVÃO"

 

 

Desembarcámos no aeroporto do Sal com atraso.

Aquele corre-corre para o check-in e éramos os últimos passageiros que faltavam para entrar na sala de embarque.

Sentada numa cadeira vi uma senhora aparentando os seus setenta e cinco anos.

Tinha todo o somático da minha ilha, pela maneira como estava admirando aquele aeroporto com os aviões aterrando, gente passando, cachimbo na boca e um lenço à cabeça afunilando atrás.

O seu ar era despreocupado e, à sua frente uma maleta que transbordava, atada com uma corda.

Não resisti a perguntar-lhe o habitual nessas ocasiões embora tivessem  feito o último aviso.

Disse-me que ia para América. Era a sua viagem inaugural. Que filho obriga a mãe a saltar a água do mar. Nunca tinha pensado sair de “Figueira Pavão,” onde nascera.

Despachar o quê? Ainda não tinha feito o check-in e nem sabia o que era!

O meu neto na Praia embarcou-me, deu-me um papel que entreguei àquela mulher bonita vestida de azul com um lenço vermelho ao pescoço

Vagarosamente procurou o bilhete metido no meio de tantas coisas que trazia na bolsa. Chamei  a senhora do balcão pedindo desculpas porque o voo já estava fechado.

Na fronteira desentendeu-se com um Polícia, porque era “raborbê”[1] demais.

Durante a viagem fui visitá-la, disse-me que estava sob os cuidados da pessoa ao lado que a levaria à casa do filho na Mérca[2].

Chegamos hoje na boca da noite ou amanhã cedo na Mérca?

Já havia quatro horas e meia que tínhamos deixado o Sal!

Desembarcamos em New-York e uma longa fila para carimbar o passaporte.

Lá estava a senhora encostada num dos pilares daquele recinto- tranquilamente.

Perguntei-lhe pelo companheiro de viagem e só me respondeu laconicamente: “não o vi estou à espera do meu filho”...

O seu passaporte? Passaporte? Enrugou a testa, procurando algo sem imagem. Mostrei-lhe o meu. Ah meu filho, espera aí.Com tanto páti-páti[3] a minha cabeça está  mariado[4]

Teve que abrir duas bolsas e não o encontrou. E a Polícia  à nossa espera!

Tinha-o num pano amarrado à cintura, juntamente com o tabaco em folha e o cachimbo.

Naquele instante preocupou-se mais com o seu cachimbo. Fumou, logo desculpando-se que tinha boca doce.

Cuspiu  num balde para papéis que estava  ali num canto.

Preenchi o boletim de desembarque. Ela não sabia a data do seu nascimento. Repreendeu-me que a gente não deve ser curiosa. Também não se lembrava dos nomes dos pais. Só dizia que todos nasceram na Figueira Pavão antes da bexiga.

Puxou a  saia para cima  e apertou o  pano à barriga, fazendo à frente um grande nó. Tirava e colocava o seu cachimbo na boca, cuspindo sempre!

O seu bilhete de passagem era até New-York e o meu até Boston.

Só me faltava meia hora para a conexão.

Tem dinheiro para pagar uma passagem até Boston onde deve estar o seu filho? Não pago mais nada porque já paguei uma vez... Mostrou-me apenas moedas de Cabo-Verde

Onde mora  o seu filho? Na Mérca.

América aonde? Na Mérca, não sabe onde é Mérca?              

Ele vem buscar a senhora? Não sei, disse-me na carta que tinha carro.

Não sabe  o endereço? Adresso? Cuspiu no chão... de novo

No meio daquele amontoado de maletas consegui identificar a dela, porque tinha aquele sinal peculiar- a tal corda!

Fomos a Boston no mesmo avião que não tinha mais que vinte lugares e todos cheios.

Agarrava-se nas costas da cadeira de frente durante as turbulências.

Chamou à hospedeira pedindo que dissesse ao chofer daquele avião que parasse com os solavancos.

Pouco minutos depois parou mesmo.

Achou que era brincadeira daqueles homens fardados que ela viu entrando no avião.

Perguntou--me se América não era onde tínhamos desembarcado.

Para quê mais “fastientura pa riba, pa baxo bento ta sacotea, avião quasi ta falupa”[5].

Quando aterramos apontando com o dedo pediu a sua bolsa à Hospedeira e ela  logo a entregou.

Olhava longamente as pessoas que ali estavam e aqueles movimentos atormentavam-na.

 

Disse-me que tinha “mariação na cabéça[6]” já tinha saudades da sua casa e dos seus animais que deixou e, além disso, estava confusa se era dia ou noite. Não comeu naquele avião, porque aquela comida era “mofino[7]”com pratos e talheres estranhos, moles.

Esperava que o seu neto de dez anos a aquela hora já tivesse dado um feixe de palha aqueles bichos.

Eu e ela procuramos o filho logo que desembarcamos em Boston.

De novo, ninguém a esperava.

Fomos para a casa da minha irmã. Na última carta do filho, afinal, constava o endereço.

À tardinha caía o sino[8].  Estradas e  árvores pintadas de branco.

A temperatura interior era amena e pela janela ela observava tudo o que passava lá fora meneando a cabeça.

O carro de Bombeiro passava com as luzes azuis intermitentes e sirenes abertas. Logo fechou rapidamente a janela com um incessante crédo, crédo, crédo... crédo.

Disse-me que estava desiludida com os seus vizinhos da Figueira Pavão...

Porquê? Porque mentem com todos os seus dentes que têm na boca.

Mas porquê? Olha: meteram-me medo que Mérca fazia muito frio que até água ficava em pedra.

Também disseram-me que  falam maricano. Eu acho que maricano e criolo é tudo igual

Sim, é verdade tudo que disseram à senhora.

Então porquê é que aquela americana naquele aviãozinho percebeu o que pedi?

 Deu-me a bolsa e até riu-se comigo.

E não estou a sentir frio. Aqui o tempo é como lá na Figueira Pavão.

 Ahhhhhh,  “tcheu  grandéza[9]” quem não entende crioulo? È só falustria.

 

Samuel Gonçalves

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] cuscuvelheiro [2] américa   [3] confusão  [4] tonta  [5] Balanço do avião de cima para baixo, quase que cai

 

[6] Que estava tonta    [7] Não presta      [8] neve        [9] Quanta soberba

bottom of page